No ano em que se celebra o 20º aniversário da RAEM, o território volta a também a acolher um novo Encontro das Comunidades Macaenses, para o qual estão inscritas 1.310 pessoas. Os encontros, que decorrem desde 1993, mantêm como padrão o reencontro às raízes, mas a tónica começa também a ser posta nos jovens. Apesar das dificuldades associadas ao distanciamento nas segundas e terceiras gerações, Leonel Alves, presidente do Conselho Geral do Conselho das Comunidades Macaenses, destacou, em entrevista ao Jornal TRIBUNA DE MACAU, o papel que as Casas de Macau têm tido na ligação ao berço da comunidade
Salomé Fernandes
-O primeiro Encontro das Comunidades Macaenses realizou-se em 1993, o mesmo ano em que se deu a promulgação da Lei Básica. O que motivou o surgimento dos encontros?
-Não participei na génese desta ideia, de reunir as diversas comunidades macaenses da diáspora periodicamente em Macau, no seu berço, mas presumo que houve intervenção de macaenses, designadamente Jorge Rangel, (…) porque é uma personalidade muito ligada à diáspora macaense. Em 1993, Macau já estava em período de transição. Julgo que foi uma ideia no sentido de perpetuar a presença macaense em Macau. Perpetuar no sentido de relembrar as suas raízes, por um lado, e por outro, encarar o futuro desta comunidade num período de transição em que estava tudo muito incerto, apesar de haver Declaração Conjunta, Lei Básica, um conjunto de textos formais que nos davam segurança da continuidade em Macau desta nossa comunidade, mas que no psíquico das pessoas havia sempre algum elemento, algum factor perturbador motivado pela natural incerteza do porvir. Creio que esta foi a razão de ser dos encontros no período de transição, dos encontros realizados sob os auspícios da administração portuguesa.
-Qual foi a primeira vez que participou?
-A primeira vez que participei foi com a criação do Conselho das Comunidades Macaenses. Foi nessa altura que, como presidente do Conselho Geral – uma espécie de Assembleia Geral – do Conselho das Comunidades Macaenses, comecei a ter uma intervenção mais próxima, apesar de não ser membro do Executivo do Conselho das Comunidades. (…) Mas no tempo de José Manuel Oliveira Rodrigues, na altura o presidente da Comissão Executiva, e agora Luís Sales Marques, houve sempre um acompanhamento do evoluir do modelo destes encontros e também dos contactos com as autoridades de Macau para garantir o apoio, nomeadamente pecuniário, para que houvesse uma maior vinda de macaenses da diáspora. Isto aconteceu já com o Conselho das Comunidades Macaenses.
– Este apoio tem sido constante ou tem havido alterações ao nível das contribuições?
-O apoio tem sido contínuo, quer do Chefe do Executivo, dos Secretários na área da cultura, ou do membro financiador que é a Fundação Macau. E também um apoio grande das autoridades do Governo Central em Macau, que é o Gabinete de Ligação do Governo Central para os assuntos de Macau. Também tem havido este apoio dos residentes chineses de Macau, dos membros dos deputados da Assembleia Popular Nacional da China e dos membros da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês. Houve sempre um carinho muito grande por parte das autoridades de Macau e pessoas ligadas à China, ao Governo Central, e também do povo em geral aqui em Macau. Há uma receptividade muito grande e apraz registar este facto. Não vejo nenhum chinês de Macau que tivesse levantado a voz contra a realização destes eventos. De repente vê mais mil macaenses a circular pelas ruas, a frequentar restaurantes, a revisitar monumentos, a encontrar os seus amigos, os abraços fraternais que se dão no meio das ruas… Não há nenhuma oposição, antes pelo contrário, há um carinho muito grande. Há um incentivo até muito grande para que estes eventos continuem e haja cada vez uma maior participação.
-E a nível monetário também esperam que continue a haver apoio?
-Claro que os organizadores querem sempre mais. Aquele que pede, pede sempre um bocadinho mais, aquele que dá procura dar sempre um bocadinho menos. Mas isto é lógica normal. Agora, como questão de princípio, o Governo de Macau tem manifestado sempre o apoio para a realização destes eventos, sob diversas formas. E é também justo salientar não só as entidades oficiais, governamentais, que têm vindo a apoiar constantemente, mas também algumas entidades privadas, designadamente a STDM, que sempre apoiou antes da tradição, e o Banco Nacional Ultramarino. São entidades privadas que têm dado sempre apoio a este evento.
-A natureza do evento sofreu alguma alteração depois da transferência de soberania?
-Creio que o padrão essencial é o reencontro às raízes. É uma espécie de romagem de saudade. Há alguns que vêm com frequência, outros que não vêm com tanta frequência a Macau, e também aproveitam a presença de macaenses espalhados ou que vivem noutros países – por exemplo uns vivem na América, outros na Austrália. É um momento de muito sentimentalismo, de um abraço fraternal que não é possível fisicamente, mas que estes encontros efectivamente propiciam. (…) Este é o padrão oficial. Agora, o que modificou hoje em dia, e sobretudo também com o encontro dos jovens macaenses, aqui a diferença de tonalidade é a realização também periódica destes encontros dos jovens, que permitem colocar uma ideia mais dinâmica, conhecer a realidade actual e as perspectivas de futuro de Macau e desta região do mundo. Os macaenses da chamada nova geração poderão conhecer Macau como uma alavanca para o Interior da China e para esta região do mundo, a Grande Baía, que é uma realidade cada vez mais pujante. E pode trazer para cada um deles desafios novos, oportunidades novas, portanto, é um abrir de portas para uma nova realidade que Macau oferece. Claro que nada disto é fácil mas é sempre uma oportunidade para as pessoas virem a conhecer esta nova dinâmica de desenvolvimento de Macau e desta região do Sudeste da China e pode ser muito proveitoso.
-Acha que alguns destes macaenses que estão fora podem ter interesse em regressar?
-Estatisticamente não temos qualquer referência, concreta ou científica. Mas as pessoas que vivem fora têm as suas vidas, as suas famílias. Não é num ápice que regressam em avalanche para usufruir das vantagens que Macau oferece. Mas o importante é conhecer a realidade actual de Macau. Conhecer Macau é conhecer o conceito “Um País, Dois Sistemas”, é conhecer o nosso regime constitucional, a nossa Lei Básica. Macau é um símbolo de paz, é um bom exemplo em como os Estados conseguem receber pacificamente os problemas herdados da História. Macau nestes 20 anos tem vivido com uma coexistência pacífica muito harmoniosa e a melhor prova desta coexistência boa é a vinda de muitas pessoas que não têm ligação com Macau e que começam a trabalhar em Macau.
-E qual é o papel dos macaenses na diáspora na divulgação de Macau?
-Macau está a ser cada vez mais internacional. Os macaenses que trabalham e vivem nos países estrangeiros têm as suas Casas de Macau, são um bom ponto de referência também para divulgar nos países ou territórios onde vivem este pequeno território, das suas especificidades. E se conseguirem estabelecer contactos profissionais de diversa natureza, não só dos membros da comunidade portuguesa da diáspora mas também trazendo a bordo outras pessoas seria benéfico para todos.
-Para além destas visitas, o desenvolvimento tecnológico pode ajudar a que estas pessoas mantenham o contacto com o território?
-Acho que sim. As novas tecnologias permitem um aproximar mais fácil de pessoas. Creio que esta experiência foi já iniciada entre os jovens. Não sei os resultados, mas temos de perspectivar isto sempre como um projecto contínuo e de longo prazo. O importante é a ideia de Macau, do macaense ser uma realidade concreta, e que as pessoas vivem e participem na construção de uma nova comunidade macaense gerada pelo circunstancialismo actual, que é completamente diferente do circunstancialismo de há um século, mas que é uma realidade que permanece e vai tendo características e tonalidades diferentes. Daí que, penso, o sentimento do macaense é algo que se constrói com o contributo de todos, daqueles que vivem em Macau e daqueles que vivem na diáspora. E é desta interacção que surge esta realidade actual do macaense.
-E é fácil passar isso às novas gerações?
-É dificílimo acho eu. Não é uma tarefa fácil, mas não é para desistir. É função das Casas de Macau que existem, que todos têm feito o seu melhor para transmitir a cultura macaense e este sentimento de ligação ao berço da comunidade macaense, que é Macau. Acho que este trabalho tem sido feito, pacientemente, pelos dirigentes de todas as Casas de Macau. E é um trabalho que tem de ser continuado e que gostaríamos que fosse cada vez mais desenvolvido e [com cada vez] mais resultados positivos.
-Quais são as principais dificuldades das Casas de Macau?
-Creio eu – não tenho nenhum estudo feito – que uma das maiores dificuldades são as segundas e terceiras gerações que nasceram fora de Macau, que obviamente têm outros imperativos, outras prioridades. Não são as prioridades dos seus pais ou dos avós e há um distanciamento natural em relação à realidade, às raízes com Macau. Acho que é o aspecto cultural, por um lado, o aspecto linguístico, por outro, sobretudo aqueles países anglo-saxónicos porventura seja o óbice maior de haver uma continuidade do sentimento de ligação a Macau. Mas sabemos todos que as Casas têm vindo a desenvolver um trabalho a nível cultural e histórico, no sentido de permitir que pelo menos alguns membros das novas gerações continuem a desfrutar desta vivência cultural e ligação com Macau.
-Alguns elementos, como por exemplo o patuá, têm vindo a desvanecer. O que podemos esperar para o futuro da cultura macaense?
-Boa pergunta, não há resposta certas ou científicas para o efeito. Creio que a gastronomia pode desempenhar um papel importante. O patuá como língua falada é quase impossível, é uma realidade virtual, mas pelo menos que algumas expressões sejam perpetuadas para haver uma ligação qualquer ao passado. E sobretudo as histórias de Macau, todo o passado de Macau, toda a cultura existente construída pelos nossos antepassados, têm de ser perpetuadas e transmitidas. Creio que é uma das principais tarefas para que as futuras novas gerações, que vivem na Austrália, no Canadá, no Brasil e outros países, continuem a ter este cordão umbilical, de índole cultural. Acho que esta é uma aposta fundamental para o futuro.
-Havia dúvidas sobre como a transição ia afectar a comunidade macaense. Continua a haver preocupações sobre como poderá ser quando chegarmos a 2049?
-Não tenho dúvidas nenhumas. Até 3049 as coisas vão funcionar muito bem. Agora, o que é a comunidade macaense? Creio que a comunidade macaense de há um século não é a comunidade macaense de 1999, e a comunidade macaense de 1999 não é exactamente igual à de 2019. O que será em 2029, ou 2039? É o contributo de cada um de nós para criar este sentimento de ‘macaensidade’, de ligação histórica, cultural, [para que] este cordão umbilical que continue a existir. E existirá enquanto houver nem que sejam dois macaenses em Macau. Esta cultura de ligação ao passado continua a existir. Obviamente que há 50 anos os membros da comunidade macaense falavam mais português. Hoje fala-se menos. Porventura, daqui a 50 anos fala mais chinês, mandarim ou inglês, mas isto não quer dizer que a comunidade em si desapareça. A comunidade vai evoluindo conforme as circunstâncias que Macau e esta região do mundo oferecem. Na década de 60/70, quando era adolescente, a cultura dominante não era exactamente igual à cultura dominante dos macaenses de hoje em dia. No meu tempo falava-se muito da história de Portugal, do desporto em Portugal, designadamente Eusébio e companheiros. Hoje em dia fala-se um bocadinho menos de futebol, mas fala-se do Cristiano Ronaldo. Não se fala tanto de fado mas fala-se de outras realidades culturais portuguesas. Hoje em dia já é mais fácil deslocar-se a Portugal, visitar Portugal, do que no meu tempo. Mas este aspecto cultural vai evoluindo. E com esta evolução a comunidade permanece. Agora, querer que esta comunidade seja exactamente igual à comunidade macaense do século XVIII ou XIX é impossível.
-Mas em termos de nacionalidade isto pode levantar questões?
-Hoje em dia creio que não levanta muitas questões. Antes de 99 poderia ter levantado algumas questões. Mas hoje há muitos macaenses que são australianos, cidadãos dos EUA, brasileiros, etc. O facto de ser chinês é um factor perturbador? Acho que não. Nem perturbador nem discriminatório. Antes da transição o presidente da República Portuguesa dizia que os portugueses, os emigrantes devem integrar-se nas comunidades onde vivem. Se vive em Paris, deve ser francês, deve participar nas eleições municipais e nacionais. O macaense ou português que vive em Macau deve participar, deve integrar-se. Se viver em Xangai deve integrar-se no ambiente sociocultural de Xangai, se vive em Macau, no ambiente sociocultural de Macau. É uma realidade inelutável. Obviamente que isto não se aplica a todos. Há uns que acham que o factor nacionalidade pode ser algo perturbador. Mas há muitos macaenses que eu conheço, sobretudo da nova geração, aqueles que não têm aquela marca tão grande histórica do passado, para quem esta questão da nacionalidade nem sequer constitui uma questão.
-O mandato dos corpos sociais do Conselho das Comunidades termina em 2019. Gostava de continuar na presidência do Conselho Geral?
-Se houver apoio dos meus conterrâneos creio que ainda tenho saúde para desempenhar estas funções. Mas tudo depende do apoio dos meus conterrâneos.